Querida, sei que, logo à noite, quando chegar a casa e te encontrar à volta das panelas lamentando o teu dia, irás mais uma vez fazer-me queixas dos disparates do Leonardo, do Lúcio e da Laura
(e eu, como sempre, a tentar lembrar-me porque raio os nomes dos nossos filhos começam todos por «éle»!)
e também do primo Luís
(será de família?),
que veio passar o verão connosco a Mem Martins, da vizinha de cima que voltou a estender roupa a pingar, ou do militar do andar ao lado que arranjou novo companheiro, irás voltar a dizer-me que o grelhador eléctrico, comprado em saldo no Feira Nova e no qual tentas com afinco assar sardinhas no estendal da roupa, não funciona bem, e eu ficarei a pensar que os problemas do meu dia são pequeninos e insignificantes ao pé dos teus.
Porque não me apetecerá contar-te que o meu chefe gritou mais uma vez comigo ou que as contas da empresa andam mal, que provavelmente nem irei ter subsídio de férias e que oxalá o ordenado não se atrase, senão a prestação das três assoalhadas com marquise
(como raio cabemos cá todos?)
está em risco, e tu querias tanto uma máquina de lavar roupa nova, igualzinha àquela que viste no folheto que deixaram na caixa do correio e que a tua irmã já tem, e eu sem ver outra alternativa senão irmos à praia de autocarro, porque o nosso Fiat Uno ainda não passou na inspecção e o meu irmão não está cá para arranjá-lo.
Não te quero preocupar com isso amor, mas também não sei de mais nada para conversar contigo. Não tenho nenhum colega que se tenha divorciado recentemente por ter sido apanhado com a cunhada a fazer nudismo no Meco e tão pouco te interessaria saber que roubaram outra vez os espelhos do elevador do prédio onde moramos. Como não ligas ao futebol, como certamente não te interessa saber que o meu computador no trabalho não se entende comigo e tenho que fazer as facturas à mão, irei permanecer calado, depois de ter dado um beijinho na bochecha corada e escutarei o quanto te correu mal o dia, pois tenho a certeza de que te continuarás a queixar mesmo quando eu fugir para a marquise onde os miúdos dormem, e eu:
«— Sim ?»
«— Tchee!...»
«— Não me digas...»,
já sem te escutar bem, tentando ganhar espaço para abrir a janela e mergulhar num cigarro porque tu não gostas do cheiro em casa. Já vi que os miúdos têm pósteres novos na parede e nas janelas, é engraçado que eles têm um ar menos chocante do que aqueles que eu tinha no meu quarto quando te conheci no secundário. Quantas vezes me apetece confessar-te que tenho saudades desse tempo, se calhar são apenas saudades dos sonhos que então tínhamos, até tu engravidares e o teu pai me obrigar a casar contigo.
Como sempre dirás aos gritos que eu estou muito calado, que não te ligo, que me fecho,
«— Se calhar arranjaste uma amante ou andas embeiçado por uma colega...»,
altura em que eu fujo para o café, para beber uma última imperial ou para a casa de banho para ler o resto da Bola.
É por isso querida, que eu gosto de ver um filme contigo na sala, naquela televisão que comprámos no último Natal, com écran grande mas de marca branca porque era mais baratinha. Normalmente, logo a seguir à telenovela, tu aconchegas-te no meu ombro, indiferente ao barulho do modem e do teclado do computador, porque os putos estão num chat qualquer a destilar hormonas
(tivemos que meter o computador na sala, sei que não gostaste,
mas não havia mais espaço),
mas não havia mais espaço),
não tarda adormeces cansada, com um pouco de sorte ficas em posição de não ressonar, e eu poderei fazer-te festas no cabelo, ficamos tão bem em silêncio sem ter que te explicar aquela parte do filme que não percebeste, a pensar como és bonita, tão bonita como no dia em que te conheci, que gosto tanto de ti, e que, se o tempo ajudar, vamos à praia este fim de semana, sozinhos, porque não dizemos aos rapazes, que preferem ir para a outra banda, nem à Laura, que arranjou namorado novo e que a mim não me parece de confiança,
(eu sei... já me esqueci de quando era novo e namorávamos...)
e, a seguir, até podíamos ir aquela churrasqueira baratinha, que faz um frango tão bom e que nos diz tanto, pois foi lá
(será que ainda te lembras?)
que me disseste que estavas grávida! Que achas?